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DOUTOR

"Você quer pegar esse caso aqui? É um casal, um deles está com sífilis secundária"

Nunca tinha atendido uma pessoa com sífilis. Quando as pessoas falavam sífilis, era bem comum eu pensar nas histórias mais bizarras, estilo Henrique VIII da Inglaterra. Fiquei empolgado por causa da curiosidade, agradeci a indicação da doutora, entrei na sala, abri os prontuários. Casal formado por A e B. A era profissional do sexo, acompanhava no hospital já há bastante tempo, fazia testagem regular para HIV, HBV, HCV e Sífilis, com uso regular da PrEP - nítidamente uma pessoa consciente e responsável. Daí pensa só: o que que as pessoas pensam desse tipo de gente? Que são uns degenerados? Uns irresponsáveis? Gente viciada em sexo? Vendidos? B trabalhava numa barbearia, tinha a infecção pelo HIV. Veio muito provavelmente porque A já acompanhava no hospital. Era um casal como outro qualquer, gente como a gente; mas pera aí, A tinha testagem regular pra sífilis com resultado positivo, sendo que contraiu sífilis há anos e tratou com Doxiciclina. VDRL indetectável da última consulta - ou seja, não tinha doença que justificasse o quadro de sífilis secundária de B, porque foi há muito tempo.

Acabando de ler o prontuário, chamei para consulta. Caro leitor, você não sabe o que é um caso de sífilis secundária até você ver um; você pode até imaginar, mas encontrar uma pessoa com lesões dilacerantes na cara não é para amadores. Me apresentei, entraram no consultório. "Em que posso ajudar hoje?"

A: "Doutor, você tem que ajudar a gente. Eu sou paciente aqui do hospital, profissional do sexo, e trouxe minha parceria aqui pra atender porque tá desse jeito que o senhor tá vendo. Por favor, doutor. A gente tá em desespero. B não tá conseguindo trabalhar por causa desses machucados. A gente passa e as pessoas ficam olhando esquisito. A gente tá muito preocupado com medo de ficar assim pra sempre ou dar uma cicatriz feia, doutor. Tem cura?"

Perceba você uma coisa muito importante: A se entregou na consulta. Estava em franco sofrimento por causa de B. Entrevistei B. Os machucados surgiram como manchas na cabeça, que depois viraram úlceras e por fim se espalharam pelo corpo todo. Tinha inicialmente achado que era uma alergia, foi ao dermatologista e tomou todos os corticoides possíveis. Não notou melhora e A conseguiu um encaixe. A apresentava lesões características de sífilis primária, e ambos tinham relações desprotegidas, o que reforçava ainda mais a hipótese de que A não tinha culpa do ocorrido.

Você, leitor, que não conhece a sífilis, saiba agora que o tratamento é extremamente simples. Consiste em aplicações de penicilina, com cura na quase totalidade dos casos. As lesões costumam desaparecer, geralmente sem deixar cicatrizes. Quando eu expliquei isso para ambos, tudo mudou da água pro vinho.

Lembre você que há pouco eu expliquei que a sífilis de B não tinha nada a ver com a exposição ocupacional de A, certo? Muito bem. Quando a doutora veio passar o caso, B imediatamente perguntou pra doutora: "Foi A que passou pra mim, doutora?" Não era possível dizer, e também não importa de quem B contraiu a infecção. Mas o impacto da pergunta ficou. Quando explicamos pra B tudo isso, a pergunta seguinte foi: "Então já que não foi A que me passou, já pode parar de tomar a PrEP?", ao que nós 3 respondemos "Não, por causa do trabalho".

Por causa do trabalho. Por mais que nós tentemos de tudo para acolher bem, para tratar com carinho, para dar disponibilidade às demandas dessa população, a de profissionais do sexo, nós nunca seremos capazes de evitar que ela passe por esse tipo de pergunta, por esse tipo de dor, até mesmo dentro do próprio vínculo familiar, porque existe uma limitação imposta a nós mesmos pela vida. Reconhecer isso é muito importante para evitar a frustração em situações como essa. E digo mais:

Terminamos a consulta. Agendamos o retorno para 3 semanas. Eu saí da consulta e fiquei com isso tudo na minha cabeça, remoendo toda essa situação. A tinha sentimentos, A demonstrou amor o tempo inteiro na consulta, A tinha consciência do risco da sua ocupação, A era responsável e consciente com relação à própria saúde, e mais importante que isso: A não era uma puta, um objeto de prazer sexual, uma mercadoria. A era gente.

Passadas as 3 semanas, eu atendia no mesmo corredor. Por coincidência, encontrei com A no dia da consulta de retorno. Sua reação me comove até hoje:

A: "Doutor! Quanto tempo! Como o senhor está? B já está chegando, vim com antecedência para já esperar a consulta"

Eu: "Como é bom te ver! Só uma coisa, por favor não se ofenda: apesar de eu ter te atendido, eu sou só estudante. Não sou doutor ainda."

A: "Isso não fez diferença pra mim. Você continua sendo meu doutor do mesmo jeito."

Entenda uma coisa, leitor. O conhecimento é fundamental - sem ele você não faz nada. O diploma de médico e o CRM são também fundamentais - são formalidades necessárias. Mas nenhum deles nos faz médicos. Naquele dia eu descobri uma coisa que mudou a minha vida:

Quem me fez médico, foi A.

- Sobre o autor: Cláudio Juliano é fã de cachorros e gatos mas morre de alergia a pelo.

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