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SIGILO

Primeira consulta de paciente com HIV. Tinha pego o prontuário pela primeira vez, pensando em todas as perguntas e em todas as angústias que estavam me esperando do outro lado da porta. Paciente gay, sozinho, que veio depois do seu diagnóstico e com resultado de CD4 e carga viral. A primeira coisa que eu me lembro de ter pensado foi "meu deus, será que ele tá imaginando que eu vou jugar ele?"


Abri a porta, chamei para o consultório: paciente jovem, magro, sozinho, justamente como eu imaginava. Me apresentei, disse que o atenderia e que teria todo o tempo que ele quisesse para a nossa consulta. Comecei a colher a história: era um paciente que tinha descoberto por engano o diagnóstico quando foi fazer um teste rápido numa unidade básica de saúde em que trabalhava como estagiário; ele ficou desesperado e resolveu testar de novo no nosso hospital, com resultado positivo. "Foi horrível, eu não consegui dormir naquele dia. Ele podia pelo menos ter me contado, sabe? Nunca me arrependi tanto de ter transado sem camisinha."


Eu só consigo lembrar que eu me identifiquei na hora com o paciente. Um menino magro, que namorou uma única vez na vida e perdeu a virgindade com esse rapaz. Passou 4 anos da vida dele amando uma pessoa que não respeitava o sentimento dele verdadeiramente - pelo menos foi esse pensamento que minhas fantasias puderam elaborar naquele momento, depois de escutar aquilo tudo. Era estudante, que nem eu. Tinha dificuldade de demonstrar seus sentimentos, que nem eu.


Voltando pra realidade, me lembro de ter perguntado pra ele em seguida: "Você tem alguém que te apoiaria com esse diagnóstico? Alguém pra conversar?" Ele respondeu: "Não. Não quero também falar pra ele, porque ele deve muito bem saber. Na realidade, pensando bem, eu contei pra minha psicóloga, porque eu sei que ela me entenderia." Não sei por que cargas d'água, mas o vínculo nasceu ali, bem na primeira consulta. Eu só consigo me lembrar de ter falado a primeira coisa que me veio a cabeça quando eu ouvi isso: "Olha, eu quero te dizer que, não importa o que aconteça, nós e nossa equipe vamos estar aqui do seu lado, de agora até quando você quiser. Nós vamos te ajudar em tudo o que você precisar, tudo. Hoje é possível viver uma vida normal tendo HIV; é possível viver com qualidade de vida, e se você ficar com medo, pode falar pra gente." Eu sei que eu abordei mais coisas a respeito do que era a infecção e de como era o tratamento, mas é disso que consegui me lembrar. Sei que em algum momento ele me perguntou sobre a minha sexualidade, e eu compartilhei que também era LGBT. Atender um paciente com uma doença dessas é reconhecer as suas próprias vergonhas, os seus próprios medos, e ver que essa gente carrega um estigma - um peso moral da doença. Será que eles esperam ser bem atendidos? Será que eles esperam que vão ser recebidos por um médico que veja eles como gente, e não como viados, putas, drogados e todo azar de pessoa associada a esses estigmas?


Meus pensamentos foram quebrados pela entrada da doutora pra passar o caso. Passei tudo, ela deu a conduta, ele começou a terapia antirretroviral. "Você tem alguma dúvida? Algo que queria compartilhar?" - ela perguntou. "Não! Eu fui muito bem acolhido. No início eu me senti ansioso e com medo, mas a gente conversou muito e ele me explicou tudo. Me sinto mais seguro agora." Ele foi embora. Primeira consulta de paciente com HIV - não a dele, a minha.


Depois de alguns meses, eu o vi conversando com outras pessoas. Eu o reconheci, e não pude deixar de gritar: "Ei! Eu te conheço!". A reação dele: "Oi! Nossa, quanto tempo! Como você tá?" Esse momento, enfeitado com dois sorrisos de orelha a orelha, uma troca de olhares de reconhecimento e de felicidade, dois seres humanos, um aqui e outro ali, foi preenchido completamente por silêncio. Mas não um silêncio qualquer: um silêncio recheado de palavras.


Um silêncio cheio de significados.


- Sobre o autor: Mário Oliveira é um jogador profissional de LoL que ocasionalmente sai de casa para respirar.

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